Às vezes pareço ser repetitivo nos temas,
e talvez o seja, ainda que a repetição não esteja em mim mas na natureza que me
aborda todos os dias sempre nos mesmos moldes, com os mesmos discursos, como o
som de uma baqueta numa pequena caixa de madeira, repetitivo, oco e eterno, que
os prisioneiros e os espiões normalmente conhecem pelo nome de tortura chinesa
e eu, que não sou prisioneiro de nada nem ninguém, sendo, quando muito, espião
da minha consciência, recebo como o pulsar do universo em deslumbrante
expansão.
A repetição que quero detalhar hoje é
aquela cena que vivencio no dia-a-dia de ver uma mulher deslumbrante por trás, de
um deslumbre capaz de que me fazer mudar o percurso mais imediato da minha
vida, ou pelo menos, desviar um pouco os meus passos orientando-os na
persecução do objectivo de observar tão luxurioso ser pela frente. E olhem que
já corri riscos nessa grande aventura, onde pessoas mais incautas perderam a
vida, como a empreitada de passar linhas de comboio de um lado para o outro, fintando
comboios brutos e rápidos e cabos de alta-tensão hiperativos. Pergunto-me se
esta cena que atormenta os meus dias tem mais que ver com a minha imaturidade inata
ou se se deve a outros factores mais básicos e menos responsabilizantes.
Tem que ver com muita coisa como irei
tentar demonstrar. Com factores exogéneos, como o desassossego que é provocado
em mim derivado de um fluxo que vem do exterior para o meu interior. Estou a
falar da projeção da luz em tais corpos que para além de lhes dar existência
lhes dá algo mais, esse inexplicável algo mais responsável por essa curiosidade
desassossegante que me obriga a fazer pequenos desvios logísticos com reflexos
neurológicos. Tem que ver também e principalmente com factores endógenos, daqueles com movimento do
meu interior para o meu exterior, como o deslumbre e a luxúria que não está nos
objectos observados mas nas pessoas que os observam, neste caso, na minha
pessoa. Na endogenia, eu, pecador me confesso!
A princípio pode pensar-se que este caso
se encerra e fica completamente explicado por esses fluxos exógenos e endógenos
mas a coisa pode estar precisamente no princípio. Então o que justifica esta
minha necessidade de ver pela frente as mulheres que me parecem exóticas por
trás, e este meu fervoroso rezar durante o percurso ou a peregrinação que
medeia os dois pontos de vista para que sejam extremamente feias de frente?
Depois de muita análise chego à conclusão de que vivo muito melhor com a
desilusão do que com a ilusão. Uma mulher exótica por trás é uma ilusão até que
eu a transforme em desilusão quando a vir feia pela frente. Em 95% das vezes as
minhas preces resultam, e a ilusão da mulher boa por trás transforma-se numa
desilusão de uma mulher feia pela frente e isso é de um sossego sem preço. O
problema está normalmente nos 5% em que as rezas não surtem efeito, esses 5%
que podem transformar a vida numa ilusão infernal.
Por que aguento melhor a desilusão do que a ilusão?
Porque a desilusão é feita de passado mas vive-se no presente e a ilusão não se
vive de todo na tentativa de se transformar o futuro no presente. A desilusão,
como uma vacina, não nos matando, torna-nos mais fortes. A ilusão, como uma
vereda sem saída, pode levar-nos à inexistência. Claro que a ilusão dá um sabor
doce à vida enquanto a desilusão a avinagra, mas o vinagre lembra-nos vivos
enquanto as coisas doces nos deixam num estado de dormência letal, ou talvez
não.