A dor chegou assim de repente, sem
pré-aviso - ao contrário das greves, como um sufoco, ali, no peito, cardíaca,
em guinadas fortes. Era quase meia noite, hora em que o dia se acaba como um
suicídio e em que todas as dores sem carácter se aproveitam, qual Adamastor,
para se agigantarem. Eu lá estava sozinho, sem ninguém ou sem motivo capaz de
parar este meu pensamento epiléptico. Eu, que em doenças cardíacas e em muitas
outras maleitas possuía um ou dois mestrados informalmente adquiridos nas lidas
da internet e nas trocas de mensagens electrónicas, àquelas horas da noite,
naquelas circunstâncias, com esta minha alma que em título disse não ser para
velhos, para corpos velhos queria neste momento clarificar, recebi aquela dor
como um “agora é que estás mesmo fodidinho e vais morrer abandonado que nem um
cão”. E é que estava mesmo! A um corpo de expatriado não há telefone ou serviço
de urgência que lhe possa valer, muito menos o há para uma alma que se recusa a
expatriar.
A dor continuava nas suas idas e vindas,
fortes, como as marés revoltas no mar, e eu ali a ver todos os sintomas lidos
em páginas dúbias a tomarem posições com uma disciplina militar, a ver a morte
tomar-me e a gozar-se disso. Eram as dores no peito e o desconforto que de
repente se acumulou no meu queixo impaciente à espera da sentença final, e eu,
esquizofrenicamente atento a todo o processo na ânsia da dor no braço esquerdo
que, tardando, sabia, qual menino Jesus, estar para vir.
Normalmente este meu corpo repousa com uma
t-shirt e uns boxer enquanto cabe à almofada o tratamento desta minha alma.
Ali, naquela noite nada normal, decidi meter uns calções vermelhos para aparecer
mais compostinho se me encontrassem semanas mais tarde guiados pelo cheiro da
putrefacção, morto, da silva. Os mesmo calções que trariam alguma decência se a
hora da morte me desse tempo e discernimento, mesmo antes da última batida, para
abrir a porta do apartamento e me deixar desfalecer do lado de fora nas áreas
comuns do edifício. É para isto, é também para isto, que se paga o condomínio,
para sermos agraciados do direito de morrermos onde bem nos apetecer. A mim não
me apetecia nada morrer e não me importaria nada de pagar o condomínio mais
caro do mundo sobre o direito a lugar nenhum. É que se permanecermos nesse
lugar nenhum talvez a morte não nos consiga encontrar.
Agora era tarde...
Eram já duas da manhã e não havia meio de
conseguir dormir. Se a dor no braço esquerdo tinha faltado à formatura parece
que o oficial do dia da morte a houvera substituído por espasmos faciais,
imagine-se! E lá estava eu às voltas. Se morrer já era mau, morrer com a cara
toda de lado seria esteticamente muito pior. Se para o resto do corpo havia o
remedeio dos calcões vermelhos para a cara nem o mais sublime pó de arroz
resolveria o assunto.
Entretanto, agora já era de tarde...
Sábado, no hospital privado de Guimarães
haviam acabado por me retirarem o cateter de uma das veias do braço esquerdo e
lá foram dizendo em jeitos de sermão que não havendo nada de mais nos exames me
aconselhavam a controlar a diariamente a tensão arterial. Quase que me atrevi a
contar-lhe a história de que que o meu mal não estava no sangue mas nesta alma
que não é para velhos.