sábado, 27 de junho de 2009

Rotina

Fui apanhado pela rotina, eu que sempre de forma proactiva lhe fugi. Uma rotina diária e não poderia haver um intervalo temporal mais curto nesta história de rotinas. Rotinas anuais todos as têm e não vem mal nenhum ao mundo por isso: Há a rotina anual das férias e a rotina anual do Natal ou do ano novo, a rotina da Páscoa. Ninguém morre por isso. As rotinas semanais também. Ninguém morre por comprar um jornal semanalmente, no mesmo quiosque no mesmo dia à mesma hora. Agora, rotinas diárias?! Deus nos livre! A rotina diária é o primeiro sinal de que a morte nos acabará por tomar e de que esse fatídico dia está pertíssimo, ao dobrar da esquina, ao descer da cama, ao sair da porta.
Claro que mesmo nestas coisas de rotinas há-as com pinta e sem pinta da mesma forma que na morte há morrer com estilo e sem estilo. Um herói que morre sem levar com ele meia dúzia de estúpidos não é herói, é meio herói, é humano e um herói nunca, mas nunca na vida!, é humano.
Analisar a minha rotina diária tem também feito parte da minha rotina diária e isso dói para caraças! É um feedback! Um eterno retorno. Dói pelo que representa. Dói porque existe o espaço para a análise e porque esse espaço é do mais vazio que pode haver.
Vejamos a minha rotina. Levanto-me cedo porque aqui o sol entra-me pela janela dentro às 5:30 da manhã. Tomo banho, corto a barba, lavo os dentes com uma escova automática durante 2 minutos. Por vezes tomo o pequeno-almoço em casa e até aí há rotina: por vezes sim; por vezes não. Saio e tenho o metro a 20 metros de casa. É lixado, não há espaço para fatalidade ou imprevisto algum. Entro no metro que passa de 10 em 10 minutos e troco para outro na próxima linha que demorará um máximo de 30 minutos. Chego ao escritório meia hora depois. O resto do dia não tem a mínima significância até que chego às 8 horas da noite que na Alemanha é pleno dia. Tempo para ir beber umas cervejas por rotina com um indiano e um britânico. Nunca bebemos uma só cerveja. O meu máximo são duas, o britânico chega às 3 e o indiano pode ir até às 7. Vamos sempre a bares diferentes tentando quebrar a rotina que a cerveja não permite quebrar. Encontramos sempre um ambiente comum: meia dúzia de alemães bêbados e feios, eles de chinelo e meia branca dando aspecto de que partiram os pezinhos, elas vestidas como eles e com um aspecto de provocar a mais irreversível das impotências. Chego a casa meio bêbado meio sóbrio e às vezes cozinho: às vezes sim; às vezes não, e faço sempre higiene antes de dormir. E durmo. Depois acordo e já sei que será a mesma coisa: Não há um átomo de alegria a perturbar a rotina alemã.

Uma questão de tomates

Eu não acho que ela escreva bem. Ela escreve como uma gaja. Simples gaja.
Ela não é como tu. Tu tens o melhor das gajas em termos de escrita, clareza de discurso, frases bem construídas, sensibilidade que os homens não tem, mas depois vais por ai fora e pensas como um homem. E isso é perfeito. Eu acho sinceramente que devias escrever um livro. Tens o melhor das escritoras e dos escritores dentro de ti. Se a parte de escritora te da tudo o que já disse, a do escritor dá-te a criatividade. Os homens são muito mais criativos em termos de escrita. Conseguem criar realidades muito mais saídas do nada. E depois... só se consegue escrever um livro, acho, coçando muito os tomates, não achas? Eu acho mesmo que existe uma relação que é linear quando se compara um livro com as coçadelas dos tomates. Um bom livro deve exigir umas 10.000 coçadelas, no mínimo. As gajas não têm tomates. O máximo que podem fazer e coçarem os tomates de algum(s) homem(s). E não e a mesma coisa. Não se pode ser muito suave nem muito bruto na dita coçadela. O prazer da coçadela depende muito mais, eu diria que uns 80%, de quem tem os tomates. Há os que gostam dela a bruta e os que não. Por isso, aproveita tudo isso, a sensibilidade e clareza do discurso, a criatividade que, como um bom livro, esta directamente relacionada com o número de coçadela. Enfim, aproveita os tomates que tens.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Desenrascar...

Aston escreveu um artigo onde descrevia as 10 palavras mais divertidas de que o idioma inglês mais necessitava. Recorrendo a algumas imagens e a exemplos descreveu o que nos outros idiomas se consegue dizer com uma só palavra. (ver em: em http://www.cracked.com/article_17251_p2.html ). Surpresa das surpresas, a palavra que encabeça essa lista é portuguesa, bem portuguesa, diga-se: Desenrascanço! Desenrascanço que ele fez o favor de escrever sem cedilhas porque os teclados britânicos e americanos não nos permitem esse luxo.
Desenrascanço. Claro que em Portugal até um miúdo de 5 anos sabe o que significa o desenrascanço. O Xiquinho só tem que chegar a casa e dizer ao pai que o Manel lhe bateu, ao qual o pai lhe ordenará: Olha, desenrasca-te!
Isto, sim, é educação. É muito português. É todo nosso.
O artigo diz que enquanto eles, o resto do mundo, eram ensinados a estarem preparados, em Portugal ensina-se o desenrascanço nas escolas e na tropa. E não é que é verdade?! Depois continua descrevendo que desenrascanço é o fazer de MacGiver, essa capacidade de encontrar uma solução para todos os problemas no último minuto, uns segundos antes de a bomba explodir, se quisermos dar mais emoção a esse artigo.
Embora a associação deste atributo aos portugueses não me tenha ajudado em nada na minha aventura profissional, uma vez que sendo eu um português que não se renega tenho sempre que provar o dobro quando comparado com um francês, holandês, alemão ou inglês, o autor do texto dá-lhe até uma valorização muito positiva, concluindo: Não se riam do desenrascanço português pois foi à custa dele que um dia conseguiram edificar um império que se estendia do Brasil às Filipinas. E fecha com este entusiasmo: “Fuck Preparation. They have desenrascanco”.
Houve três grandes portugueses, pelo menos, que conseguiram descrever, cada um à sua maneira, em prosa ou em verso, o ser-se português e o que isso representa para o mundo em termos de potencialidades para a resolução das suas grandes questões e conflitos permanentes. No fundo todos eles eram apologistas deste desenrascanço, apenas lhe chamavam nomes diferentes. Camões descreveu brilhantemente a inspiração dos portugueses que ofereceram ao mundo o oceano e que lhe iriam oferecer um dia o quinto império. A inspiração é coisa que não se planeia, aparece no último segundo. Desenrasca-se, digamos assim. Mais tarde, Fernando Pessoa, com toda a sua imprevisibilidade e personagens, falou também de um quinto império só ao alcance de um Povo, o Povo português. Agostinho da Silva, por último, chegou mesmo a dizer que a missão de Portugal e dos portugueses é sacralizar o universo. Porque o ando a revisitar vou colar aqui um excerto de uma entrevista dada por AS a Vitor Mendanha. AS diz assim: “O português, em situações difíceis, aparece como capaz de apresentar uma solução de que ninguém se tinha lembrado e perante a qual os outros povos até recuaram, por parecer não existir qualquer espécie de solução. Do português há a esperar tudo e haver um povo no Mundo do qual tudo há a esperar parece-me ser uma coisa extraordinária… Gostaria muito que o Povo português se especializasse no imprevisível”.
O dono do artigo que coloca o desenrascanço português no top 10 das palavras que mais falta fazem ao idioma inglês, se tivesse lido um dos 3 nomeados acima, em lugar de concluir no passado passaria também a rematar mais ou menos assim no futuro: Não se riam, será à custa deste desenrascanço que os portugueses oferecerão ao mundo um quinto império fora das rédeas do tempo e do espaço.
Eu sei… Com miséria política, social, económica que se instalou no país fica até difícil de acreditar. Mas, Portugal, é “o ser-se português”, e ser-se português pode-se ser em qualquer lugar do mundo. Eu acredito no quinto império, para lá da quarta dimensão espaço-tempo!

Tudo se vende?

Na internet tudo se vende, tudo mesmo. A empresa de vendas na web, Ebay, está por detrás da façanha que pretendo descrever. Alguém decidiu vender uma vida. Se esse alguém tivesse dito pretender vender “a sua própria vida” poderíamos pensar que ele estaria disposto a morrer se houvesse quem pagasse por isso, mas não, Muito pelo contrário, o indivíduo do site http://www.alife4sale.com/ decidiu vender uma vida, a dele, a que ele vivia, não para morrer mas, e como ele próprio diz, para com o dinheiro que derem pela vida que tem “entrar no comboio sem ideia alguma para onde ir” e ir, em frente, sem reserva. Enfim, decidiu vender a a vida para começar a viver uma outra.
Então pergunta-se-lhe, o que é vender uma vida?
Ele responde: “Tudo. O meu estilo de vida, a minha casa, o meu carro a minha motorizada, o meu trabalho, os meus amigos. Tudo o que eu possuo, e todas as coisas que, embora não as possuindo, constituem uma parte importante da minha vida”.
A mulher, constatei, já não a poderia vender porque ela tomou a iniciativa de sair do cabaz um pouco antes, e, como ele mesmo disse, foi essa a principal razão para colocar à venda uma vida, a vida que, embora sendo muito boa, não quer mais ser o dono.
A ideia de vender uma vida por atacado é soberba, convenhamos. Em lugar de a vender, digamos, peça por peça, armário por armário, a retalho, o autor pretendia vender tudo como se de um cabaz se tratasse, não perdendo tempo, o tempo que inevitavelmente existiria entre a venda de cada “artigo” corpóreo ou incorpóreo. O mais hilariante é que Ian Usher, assim se chama o senhor, conseguiu mesmo vender o seu cabaz “uma vida” no dia 29 de Junho de 2008.
A sua nova vida, a que ele vai comprando com o dinheiro que a outra vida lhe rendeu, pode ser seguida agora em http://www.100goals100weeks.com/. Se a sua velha vida foi excelente muito melhor é a sua nova vida, mas não é desta nem da outra que eu gostaria de falar. Há pessoas capazes de vender a própria mãe, este vendeu, inteligentemente, uma vida, que era a sua. É sobre a venda que quero falar.
Agora, analisemos, seria a vida magnífica que ele tinha o que o desgostava? Não me parece. Não era a vida o objecto do qual ele se queria desfazer mas apenas do acesso à memória que tinha da sua vida. Teria Ian tentado primeiro, mas sem sucesso, vender a sua memória? Quem lhe comprou a vida não se tornou dono da sua memória, e era da memória que ele se queria livrar. Como nos diz Krishnamurti, o pensamento só existe porque existe memória. Então, duvido eu, o “penso logo existo” de Descartes deve tão simplesmente ser reduzido na abstracção a um “penso logo tenho memória”. Será o “tenho memória logo existo” uma conclusão válida? ou é o acesso a essa memória, essa actividade de aceder e posterior criar e recriar de imagens, esse “pensar”, que permite concluir sobre a existência? Sem memória seremos ninguém?
A memória é sempre “passado”, é sempre preconceito, é sempre hábito e costume. Será possível vendermos a nossa memória? Eu não me importarei de vender a minha se me assegurarem essa possibilidade, se me garantirem que é vendável, que há por aí alguém disposto a comprar, a tornar-se dono dela, da minha memória e do meu preconceito. Não me importarei até de a dar, em favor da criatividade. Só se é verdadeiramente criativo e inovador em momentos sem passado. Eu, feliz ou infelizmente, não tenho memória de ter tido um momento assim.