sexta-feira, 5 de junho de 2009

Tudo se vende?

Na internet tudo se vende, tudo mesmo. A empresa de vendas na web, Ebay, está por detrás da façanha que pretendo descrever. Alguém decidiu vender uma vida. Se esse alguém tivesse dito pretender vender “a sua própria vida” poderíamos pensar que ele estaria disposto a morrer se houvesse quem pagasse por isso, mas não, Muito pelo contrário, o indivíduo do site http://www.alife4sale.com/ decidiu vender uma vida, a dele, a que ele vivia, não para morrer mas, e como ele próprio diz, para com o dinheiro que derem pela vida que tem “entrar no comboio sem ideia alguma para onde ir” e ir, em frente, sem reserva. Enfim, decidiu vender a a vida para começar a viver uma outra.
Então pergunta-se-lhe, o que é vender uma vida?
Ele responde: “Tudo. O meu estilo de vida, a minha casa, o meu carro a minha motorizada, o meu trabalho, os meus amigos. Tudo o que eu possuo, e todas as coisas que, embora não as possuindo, constituem uma parte importante da minha vida”.
A mulher, constatei, já não a poderia vender porque ela tomou a iniciativa de sair do cabaz um pouco antes, e, como ele mesmo disse, foi essa a principal razão para colocar à venda uma vida, a vida que, embora sendo muito boa, não quer mais ser o dono.
A ideia de vender uma vida por atacado é soberba, convenhamos. Em lugar de a vender, digamos, peça por peça, armário por armário, a retalho, o autor pretendia vender tudo como se de um cabaz se tratasse, não perdendo tempo, o tempo que inevitavelmente existiria entre a venda de cada “artigo” corpóreo ou incorpóreo. O mais hilariante é que Ian Usher, assim se chama o senhor, conseguiu mesmo vender o seu cabaz “uma vida” no dia 29 de Junho de 2008.
A sua nova vida, a que ele vai comprando com o dinheiro que a outra vida lhe rendeu, pode ser seguida agora em http://www.100goals100weeks.com/. Se a sua velha vida foi excelente muito melhor é a sua nova vida, mas não é desta nem da outra que eu gostaria de falar. Há pessoas capazes de vender a própria mãe, este vendeu, inteligentemente, uma vida, que era a sua. É sobre a venda que quero falar.
Agora, analisemos, seria a vida magnífica que ele tinha o que o desgostava? Não me parece. Não era a vida o objecto do qual ele se queria desfazer mas apenas do acesso à memória que tinha da sua vida. Teria Ian tentado primeiro, mas sem sucesso, vender a sua memória? Quem lhe comprou a vida não se tornou dono da sua memória, e era da memória que ele se queria livrar. Como nos diz Krishnamurti, o pensamento só existe porque existe memória. Então, duvido eu, o “penso logo existo” de Descartes deve tão simplesmente ser reduzido na abstracção a um “penso logo tenho memória”. Será o “tenho memória logo existo” uma conclusão válida? ou é o acesso a essa memória, essa actividade de aceder e posterior criar e recriar de imagens, esse “pensar”, que permite concluir sobre a existência? Sem memória seremos ninguém?
A memória é sempre “passado”, é sempre preconceito, é sempre hábito e costume. Será possível vendermos a nossa memória? Eu não me importarei de vender a minha se me assegurarem essa possibilidade, se me garantirem que é vendável, que há por aí alguém disposto a comprar, a tornar-se dono dela, da minha memória e do meu preconceito. Não me importarei até de a dar, em favor da criatividade. Só se é verdadeiramente criativo e inovador em momentos sem passado. Eu, feliz ou infelizmente, não tenho memória de ter tido um momento assim.

1 comentário:

Luísa disse...

Fiquei à espera de ver este texto no outro blog e nada...
Afinal havia outro...