terça-feira, 17 de novembro de 2009

Nina

E os teus olhos olharam-me pela última vez, pintados de um adeus triste, de um até qualquer dia eterno, de uma gratidão sem medida. Disseste-me adeus como dizem adeus alguns dos mais extraordinários seres humanos e esperaste que eu te desaparecesse no escuro da noite a formar-se cá fora à mesma velocidade com que avançava o escuro arterial do teu coração. Amei-te como se amam as pessoas e, esta minha mistura de amor e cobardia, esta má formação congénita que trago presa à alma em cada um dos meus renascimentos não me fez capaz de te ver partir. Fugi como sempre fujo, fugidiamente. Por isso, quando me olhaste de olhar vidrado de dor e sufoco, sabias com uma intuição canina que aquele era o momento final e, num esforço derradeiro, paraste a aflição que te ruía o coração morto por partir e transformaste para sempre o meu isolamento na mais pura das solidões da mesma forma que a melhor das alquimias transforma qualquer elemento no mais puro dos oiros. Se pudesse inverter o fluxo do tempo com a mesma facilidade com que um piloto inverte o fluxo propulsor de um avião adormeceria contigo aquela noite para que me abandonasses com a ideia de que te amei sem exigências como se deveriam amar as pessoas, amei-te como se ama a natureza, sem palavras, de coração completo, aberto, sem nada para te ocultar. Vi-te nascer e andei contigo ao colo, vi-te viver e esses momentos ajudaram o movimento rotacional dos imensos mundos que trago como tu trazias cá dentro, não te vi morrer e tu, com a mesma hipersensibilidade com que sabias que aquele momento em que nos olhámos seria o último, tinhas a certeza desde que nasceste de que eu não teria a coragem de te ver morrer. Sei que me perdoaste logo na sabedoria ingénua dos teus primeiros meses, mas, mesmo assim, sob todo esse teu perdão, este é o preço que agora pago por não ter dado os meus braços à dor de te ver partir, é esta a imagem dos teus olhos saliente curvando as extremidades tristes para o chão húmido da tua respiração forçada, da mesma forma que os velhos fazem vénias doloridas à gravidade ou à bengala, que agora lateja dentro de mim, são esses olhos que em vida com toda a vida queriam falar sobre as sensibilidades e os mistérios que transportavas contigo desde pequenina que agora me olham abandonados para sempre, tristes, tristes como um obrigado mútuo pelo que fomos e pelo que a natureza já não nos permite voltar a ser, triste como um sem abrigo que chega ao final da noite sem ter onde se abrigar, tristes com quem vê na areia a vida a fugir-lhe por entre os dedos. Tristes tristes. É esta a obra que sem querer plantaste cá dentro, de mim e de outras tantas pessoas. Obrigado por teres feito parte da minha vida, obrigado pelos sábados madrugadores em que pacientemente ouviste enquanto passeávamos quase de mão dadas todas as histórias absurdas que sempre tenho para contar. Obrigado por teres existido Nina… Todos os trovões irão trazer-me de vota os teus medos, os medos mais sapientes.


Não morrerei sem entender que mal te levou.

4 comentários:

Mavíldia disse...

Analogia que faço de tudo isto assemelha-se a uma caixa de pandora que de repente se abriu e que durante uma semana levantou uma nuvem preta, provocando uma tempestade cortante que arrasou com todos que a vivenciaram. Findo uma semana, os ruidos inquietantes deixaram de se ouvir, a caixa de pandora sugou a nuvem preta para dentro de si e fechou-se bem fechada até um dia se voltar abrir...

Até lá o sol voltou, a esperança renasceu, e criamos novas ilusoes para continuarmos a caminhar em direcção à incerteza de uma única certeza.

Emocionou-me o texto que escreveste.

Beijo.

Niels disse...

A começar por um subtil empurrão no rabo pela descendência até ao solicitar um afagar de cabeça, tudo consegui ter desta fantástica família que me entristece imenso ver partir.
Quem me conhece sabe que não sou um acérrimo amante dos canídeos mas estes conseguiram conquistar-me com enorme facilidade.
Tenho que confessar que sentia enorme prazer de acompanhar este maravilhoso trio até ao monte que tanto gostavam e sentia-me orgulhoso por já conseguir fazê-lo sozinho.

Obrigado, aos três, por me terem mudado a opinião acerca do melhor amigo do homem.

R. disse...

Há dores que não se explicam. E antes destas dores, os sentimentos que nos unem aos animais. É nestas alturas que nos apercebemos do que é o amor incondicional. Temos tanto a aprender com eles, com a forma como se dão. Com a maneira como se vão "intrometendo" lentamente na nossa vida, até fazer parte dela em definitivo. Até que partem e deixam no ar uma dolorosa ausência. Infelizmente, sei o que custa deixar de os sentir por perto...por isso, partilho, esta tua dor.

Anónimo disse...

Este são os únicos que respeitam os nossos silêncios. Respeitam o nosso espaço, amam-nos sem condições e apesar de tudo, e sem questões, apenas estão...incondicionalmente. Sei que sentes.
Um beijo na tua Alma